A flora do Município de Alenquer
A flora do concelho de Alenquer compreende dois grandes grupos opostos de plantas. De um lado, aquelas que estão associadas aos solos calcários, com grande representação no concelho, e que exibem uma flora riquíssima, associada aos carrascais e outros matos baixos calcícolas, que culminam em dois geomonumentos incontornáveis, o Canhão Cársico de Ota e o Montejunto. Do outro lado, a flora associada a solos ácidos, cascalhentos ou arenosos, que se exprime na forma de urzais e tojais, frequentemente sob coberto de sobreiros e pinheiros, e que compreende muitas espécies raras a nível regional ou nacional.
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Canhão Cársico de Ota
O CCO é pródigo num dos habitats mais invulgares de Alenquer, as cascalheiras de calcário, extensos depósitos de pedra partida pela acção dos elementos, que se acumulam ao longo das vertentes deste espetacular vale encaixado. Estas cascalheiras são palco para um desfile anual de uma espécie que adquire aqui abundâncias fora do normal, o Senecio minutus. Em anos favoráveis, a exuberância desta população não tem paralelo em Portugal, desenvolvendo-se aos milhares, espalhada por várias cascalheiras. Curioso é notar que a planta ocorre apenas nas cascalheiras, nem um pé se aventura pelos matos. Nestes ambientes, embora em muito menor quantidade, podemos também encontrar Hesperis laciniata, um goivo de grandes flores rosa intenso, de muito rara aparição no país, e que aqui se exibe também em números fora do normal. Quem, no entanto, se hipnotiza com este desfile, corre o risco de ignorar uma pequena leguminosa, que vê nas cascalheiras do CCO o seu único local de ocorrência conhecido de momento no concelho: trata-se de Lens lamottei, espécie ameaçada em Portugal, que é o parente selvagem mais próximo da lentilha cultivada.
A circundar as cascalheiras estão os bosques e matagais. São peculiares. Nestes bosques não se encontra o expectável carvalho-cerquinho (Quercus faginea), que tanto prospera e regenera nos calcários da Grande Lisboa. Antes encontramos exemplares arborescentes de espécies habitualmente arbustivas, que coalescem num matagal denso, onde apenas uma enfraquecida luz esverdeada logra atingir o solo. Neste abrigo escuro podemos encontrar uma planta raramente vista, e que não se deixa descobrir em mais do que um punhado de exemplares (por vezes só um isolado), a sugar a seiva das raízes de Rubia peregrina. Trata-se de um daqueles casos extremos de especialização no parasitismo de um só hospedeiro. Curiosamente, a parasita, Orobanche clausonis subsp. hesperina, encontra-se restrita, em Portugal, a apenas alguns locais na Estremadura, pese embora a ampla distribuição e abundância do hospedeiro (R. peregrina) em todo o país.
Finalmente, há ainda uma planta muito pequena e extremamente difícil de encontrar em Portugal, que surge num metro quadrado de terreno, algures num resto de cascalheira engolida pelo matagal. São apenas poucas dezenas de pés de Arabis verna, que são conhecidos no concelho de Alenquer, e estão somente nesse metro quadrado misterioso. A sua raridade no país, onde aparece sempre em núcleos muito pequenos e isolados como este, levou à sua avaliação como espécie ameaçada de extinção.
Montejunto
Na transição entre as planuras do Tejo e os outeiros calcários que levam ao litoral, destaca-se ao longe, majestosa, a serra de Montejunto. É uma das seis irmãs, as grandes serras calcárias do Oeste. Esta pequena serra, a do Montejunto, que já Frei Luís de Sousa no século XVII descreveu como «hum só monte de pedra, ou huma só pedra, ante que serra», embora assim o possa parecer, esconde inúmeros segredos que têm vindo a deliciar locais, visitantes e estudiosos de todas as áreas, nas quais se inclui, claro está, a botânica.
A serra de Montejunto, também conhecida localmente como serra da Neve, eleva-se a 666 m de altitude, sendo este o miradouro mais alto da (sub) Região Oeste. Apresenta-se no prolongamento sudoeste do Maciço Calcário Estremenho, bastante mais a sul, fazendo parte dos concelhos de Alenquer e Cadaval. Geologicamente, é formada maioritariamente por rochas calcárias, mas também pontualmente por outros tipos, com idades que vão desde o Jurássico Médio ao Cretácico. É dominada por uma paisagem cársica, onde se podem observar diversas estruturas como grutas, algares, dolinas, escarpas, campos de lapiás, e cascalheiras. As serras calcárias funcionam tipicamente como esponjas, “absorvendo” quase a totalidade da água que cai na superfície, que ao se infiltrar nas inúmeras fendas e aberturas das rochas, forma grutas e algares no subsolo. À superfície, a água, assim, escasseia.
Pelas suas características naturais, bem como pela sua localização entre o oceano e o vale do Tejo, destaca-se de uma região envolvente fortemente antropizada desde há séculos, surgindo esta serra como uma importante ilha de biodiversidade, disfarçada sob um vasto e aparentemente monótono manto verde, de matos calcícolas densos. É uma monotonia enganadora. À medida que vamos subindo, vão-se diversificando os ambientes, e vão entrando em cena algumas plantas que não esperaríamos ver, e que não vemos em toda a região calcária envolvente.
Se subirmos por um certo vale ladeado por pequenas cascalheiras, o primeiro indício de que estamos num sítio especial vem de Helleborus foetidus, uma planta de aspeto aberrante que não ousa aventurar-se pelas terras mais baixas. Logo a seguir, a primeira grande ocorrência digna de nota: Anthemis canescens, malmequer amarelo que parece ter perdido as «pétalas» – e perdeu as de fora – mas no conjunto de flores do centro estão lá, arrumadas milimetrica e geometricamente, tal como nas restantes flores desta vasta família das compostas. É um malmequer enorme, robusto, lenhoso, que orla algumas cascalheiras da serra; e há um certo mistério à sua volta, pois é uma planta raríssima em Portugal, avaliada como Em Perigo de extinção, existindo somente em menos de 10 pequenos núcleos populacionais muito isolados pelo país. Estranhamente, nunca foi encontrado nas serras calcárias irmãs de Montejunto – Arrábida, Candeeiros, Aire, Sicó, Alvaiázere – e está aqui para nos relembrar que cada uma delas é única.
Continuando a subida, vamos encontrando zonas relativamente planas de matos ralos pastoreados, com uma imensa diversidade de pequenas ou minúsculas plantas. Nestes ambientes, facilmente encontramos a Linaria amethystea subsp. multipunctata, uma ansarina endémica do Centro-Oeste Calcário, e entre ela, uma crucífera pequena que vem do norte, Jonopsidium abulense, e que vê em Montejunto quase o seu limite sul de distribuição ibérico. E entre ela, uma crucífera ainda mais pequena, Hornungia petraea, com flores verdadeiramente minúsculas. Aqui e ali, a cravina-de-montejunto, Dianthus cintranus subsp. barbatus, uma espécie de cravo que tem origem nas serras calcárias do Oeste.
Quando do planalto emergem afloramentos e pequenas escarpas, é altura de revermos o Senecio minutus, agora já não com aquelas abundâncias da Ota, mas ainda assim enchendo o olho. E estas rechãs de calcário onde ele se encontra são também o habitat de uma planta mais rara ainda, que no concelho de Alenquer não existe se não aqui, nas altitudes de Montejunto, a Saxifraga cintrana: folhas carnudas, planta bem peluda, quase de aspeto animalesco, brota das fendas e orifícios do calcário, lá para cima. Raramente se vê. E muitas vezes pensamos que a vemos, Saxifraga peluda a brotar do calcário, mas chega a época de floração e a ilusão desfaz-se: as flores têm as pétalas glabras, o que faz dela a sua irmã, S. granulata, comum por todo o país, e fazendo-se frequentemente passar por S. cintrana. Mas aqui não, aqui nas altitudes de Montejunto, é a genuína S. cintrana em grande abundância, um endemismo restrito das serras calcárias do oeste.
Continua-se a progressão serra acima, e está cada vez mais vento. Agora sim, podemos chamar esta serra de serra, com propriedade. É curioso porque é que só no topo dos topos surge esta outra planta, que é quase o símbolo de Montejunto. Se queremos encontrá-la, é isso que temos de fazer, procurar o lugar mais alto, mais ventoso e mais frio. E é lá que o vemos, Senecio doronicum subsp. lusitanicus, mais uma planta endémica do Centro-Oeste Calcário de Portugal continental, muito rara, e que ocorre em carrascais abertos, relvados perenes e acumulações de terra em afloramentos de cumeada. Cumes estes, geralmente voltados a norte, ventosos e frios. Conhecem-se duas populações maiores, uma nesta serra e outra na serra da Boa Viagem, e depois alguns núcleos reduzidos na região de Arruda dos Vinhos. E é tudo. No mundo, não existe mais. Foi considerada Em Perigo na Lista Vermelha de Portugal continental devido à sua raridade e susceptibilidade a ameaças. É um malmequer amarelo, que pode parecer igual a alguns outros à primeira vista, mas que ao olhar com atenção se descobrem pormenores diferentes, como as folhas carnudas e de aspecto lanoso, que relembram os seus antepassados, que terão vindo dos Alpes pelas montanhas do norte de Espanha até chegarem aqui, aos cumes mais frios do Oeste. Aqui ficaram isolados, aqui especiaram, e aqui ainda estão, sozinhos e muito longe dos seus antepassados.
A faixa arenosa de Camarnal-Ota
A zona este do concelho de Alenquer, onde predominam os solos arenosos, encontra-se profundamente alterada por ação humana. O impacto da atividade humana é facilmente observável nas extensas plantações de eucalipto, areeiros, parques solares e áreas agrícolas, contudo, nos pequenos fragmentos de habitat que ainda resistem, concentra-se uma biodiversidade florística bastante relevante, na qual se podem encontrar algumas plantas raras a nível municipal ou mesmo nacional.
Nos substratos arenosos consolidados dominam os urzais-tojais, dominados por combinações variáveis de urzes (Erica scoparia, E. umbellata, Calluna vulgaris), tojos (Ulex airensis, Genista triacanthos) e cistáceas (Cistus crispus, C. psilosepalus, C. salviifolius), em mosaico com matagais de aroeira (Pistacia lentiscus), sanguinho (Rhamnus alaternus), murta (Myrtus communis) e carvalhiça (Quercus lusitanica) e prados vivazes, de bracejo (Stipa gigantea) e braquipódio (Brachypodium phoenicoides). Em alguns locais, nas clareiras destes matos encontram-se plantas com interesse para a conservação, como Thymus villosus, Euphorbia transtagana, Drosophyllum lusitanicum, Rhaponticoides africana e Klasea boetica subsp. lusitanica var. sampaiana.
Nas areias soltas encontram-se comunidades e plantas de ocorrência muito restrita no concelho de Alenquer, como os matos xerófilos de tojo-chamusco (Stauracanthus genistoides) e sargaças (Halimium calycinum, H. halimifolium) e os prados anuais psamófilos com Linaria spartea, Leucojum trichophyllum, Silene scabriflora e Centaurea polyacantha, entre outras. Estas areias soltas constituem habitat para várias plantas raras no concelho, incluindo a endémica Armeria pinifolia, Ononis broteriana e Pycnocomon intermedium.
Nas areias com humidade permanente é ainda possível encontrar resquícios de uma vegetação higrófila particularmente diversa, onde se incluem habitats como os urzais-tojais higrófilos (com Erica ciliaris e Ulex minor), os juncais (Juncus conglomeratus, J. rugosus) e os prados de molínia (Molinia caerulea). Estes habitats higrófilos constituem verdadeiros refúgios de diversidade florística, assinalando-se a presença de espécies raras como Pinguicula lusitanica, Erica erigena, Cheirolophus uliginosus, Euphorbia uliginosa e Leuzea longifolia, várias delas de ocorrência muito pontual no concelho, ou mesmo a nível nacional.
Para além da excessiva fragmentação do habitat causada pelas atividades humanas, a flora dos terrenos arenosos encontra-se também ameaçada pela expansão de plantas invasoras – como por exemplo, as acácias (Acacia spp.), a háquea-picante (Hakea sericea), o chorão-das-praias (Carpobrotus edulis), o rícino (Ricinus communis) e a erva-das-pampas (Cortaderia selloana) – pela drenagem dos terrenos e pelas secas prolongadas e cada vez mais recorrentes.
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